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segunda-feira, 27 de junho de 2011

Não poderás ser tão igual quanto eu

Semana passada caiu na rede um discurso da deputada Myrian Rios (RJ) contra a PEC 23/2007, um projeto de emenda à constituição do Rio de Janeiro que visa incluir “orientação sexual” entre as discriminações passíveis de punição no estado. Tenta, portanto, fazer para o estado do Rio de Janeiro o que a PLC 122/2006  tenta há 10 anos fazer pelo país. E seu discurso, por si só, já é uma prova inequívoca de que o país precisa urgentemente de uma legislação específica para o tema:


Gostaria de frisar alguns trechos do discurso da deputada:

“...se somos todos iguais, com os mesmos direitos, eu também tenho o direito de não querer um funcionário homossexual na minha empresa.”

“Digamos que eu seja mãe de duas meninas e eu contrate uma babá e essa babá mostra que a orientação sexual dela é ser lésbica... Se a minha orientação sexual não for essa, for contrária, e quiser demiti-la, eu não posso, pois vou estar enquadrada nessa PEC... O direito que a babá tem de se manifestar na orientação sexual dela como lésbica, eu tenho como mãe de não querê-la na minha casa como babá de minhas filhas... Eu vou ter que manter a babá na minha casa, cuidando das minhas meninas e sabe Deus se ela não vai, inclusive, cometer a pedofilia com elas. Eu não vou poder fazer nada.”

“Se o rapaz escolheu ser homossexual o problema é dele. Eu o respeito como próximo, como ser humano... Eu o contrato para ser motorista e eu tenho dois meninos em casa. Ele começa então a vir trabalhar vestido de mulher, travestido, porque essa é a orientação sexual dele. Como mãe de dois meninos, opa, não é essa minha orientação sexual aqui em casa. Aqui em casa, gostaria que meus filhos crescessem pensando em namorar uma menina para perpetuar a espécie, como está em Gênesis. Deus criou o homem e a mulher para perpetuarem a espécie. É uma orientação sexual que eu concordo; que eu vivo e formo meus filhos assim. Mas, se no momento em que eu descobrir que o motorista é homossexual e poderia estar de uma maneira ou de outra, tentando bolinar o meu filho... Não sei, pode de repente partir para uma pedofilia para com os meninos, não vou poder demiti-lo, porque a PEC-23 não me permite, porque causarei prejuízo a esse rapaz que tem orientação sexual homossexual.”

“...Sou uma missionária católica; sou mãe de dois meninos e sou Deputada representando o povo. Representando o povo, quero defender as crianças e os jovens inocentes. Se essa PEC passa, e um rapaz tem uma orientação sexual pedófila, tem a orientação sexual de transar, de ter relacionamento sexual, com menino de três a quatro anos, nós não vamos poder fazer nada, porque ele está protegido pela lei, pela PEC-23, meus queridos. Isso eu não vou permitir.”

“...Eu tenho na minha família primos homossexuais: lésbicas e homens homossexuais. O que eu posso fazer? Na minha casa. Família; de sangue. Pessoas íntimas na minha família que eu respeito; que eu amo; que eu oro; que eu rezo e que eu clamo. Vou fazer o quê? É a opção deles. Eu não os desrespeito; não sou preconceituosa; não deixo de conversar com eles; não deixo de amá-los como ser humano e como filhos de Deus. Mas, não vou permitir que, por desculpa de querer proteger ou para sacarem com violência à homofobia, abramos uma porta para a pedofilia. A orientação sexual pode ser qualquer uma. Como abordei antes, ela pode ser uma relação sexual com uma criança, com um menino e, assim, as crianças serão prejudicadas.”

No discurso da deputada aflora dois argumentos absurdos que infelizmente ainda ouvimos sair da boca de muita gente. Fico impressionado de ouvir uma lógica tão torpe e irracional ser defendida com tanta paixão, muitas vezes por pessoas instruídas, e fico me perguntando o motivo...

1) A ideia de que homossexualidade está diretamente ligado à pedofilia:  Homossexualidade é uma das três principais categorias de orientação sexual (juntamente com Heterossexualidade e Bissexualidade). Caracteriza-se por atração física, estética ou emocional por outro ser do mesmo sexo. Pedofilia, por sua vez, é um desvio sexual caracterizado por preferência sexual por crianças, meninos ou meninas, geralmente pré-púberes. Pedofilia não é, portanto, considerada orientação sexual (pelo menos pelas linhas de pesquisas dominantes), uma vez que crianças são suficientemente diferentes dos adultos, seja física ou psicologicamente, para que a pedofilia possa ser categorizada como tal. Além disso, ao contrario do que a maior parte da mídia diz, os pedófilos não são condenados pro crime de pedofilia. De fato, pedofilia nem é crime no Brasil. Eles são condenados por estupro e atentado violento ao pudor. E não vão deixar de serem condenados por esses crimes (ou pelo crime de pornografia infantil, quando for o caso) caso o PLC 122/2006 ou qualquer outro projeto de lei nesse sentido seja aprovado.

2) A ideia de que conviver com homossexuais faz de alguém um homossexual, o que está diretamente ligado com a impressão de que homossexualidade é uma escolha. Eu acredito que a reflexão sobre uma pergunta retórica simples acaba com esse argumento: quem, em sã consciencia, iria escolher ser gay em um mundo tão preconceituoso? Pra quê? O que ganharia com essa escolha?


O que mais me preocupa no discurso da deputada, assim como no discurso de todas as pessoas que são contra o PLC 122/2006, é que geralmente eles usam o discurso da liberdade de expressão para justificarem seus pensamentos discriminatórios. Como quando ela diz que quer ter o direito de poder escolher demitir uma pessoa por ser homossexual ou quando um pastor ou padre diz que quer ter o direito de condenar o homossexualismo durante seus sermões porque sua religião assim o diz. Uma coisa é você ter a sua crença e acreditar nela e outra muito diferente é quando você usa essa crença pra disseminar o ódio contra outras pessoas. Uma coisa é você demitir um funcionário porque ele é incompetente, outra é você demití-lo por sua orientação sexual mesmo que ele seja competente e plenamente capaz de realizar as funções para as quais foi contratado. E é para amparar os homossexuais nessas situações que o projeto de lei existe. Para coibir uma atitude que deveríamos ser capazes de evitar por simples bom senso. Afinal, orientação sexual não tem relação direta com caráter e competência. As pessoas são homossexuais, heterossexuais ou bissexuais. E elas também podem ser boas, más, competentes, preguiçosas, alegres, tristes, mesquinhas, pedófilas, necrófilas, inteligentes, idiotas, ranzinzas, desorganizadas, eficientes, convencidas, recatadas, promíscuas, exibicionistas, puritanas, etc. Sem que sua orientação sexual tenha relação direta com uma qualidade, defeito ou característica; e vice-versa.

Aliás, você já parou para olhar o texto do PLC 122/2006? Ele altera a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que  tratava apenas de “crimes resultantes de preconceitos de raça ou de cor”, e o § 3º do art. 140 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, que detalha crimes de injúria para elementos referentes a raça, cor, etnia, religião ou origem; incluindo na definição desses crimes os preconceitos de “condição de pessoa idosa ou com deficiência, gênero, sexo, orientação sexual ou identidade de gênero”.  Não é, portanto, apenas em defesa dos homossexuais. Aliás, quando dizem “orientação sexual”, incluem Bissexuais e Heterossexuais, ou seja, apesar de não ser comum, eu entendo que seria crime também um eventual preconceito contra héteros em ambientes gays. Para ler o texto todo do projeto de lei da forma como ele está hoje, clique aqui.

Recomendo também a leitura dessa seção de erros e dúvidas comuns sobre o projeto de lei e do texto desse blog que li durante a pesquisa e que achei muito abrangente e interessante.
Para ver o outro lado da moeda, clique aqui. Não deixe de ouvir o audio e ver os vídeos.

Aliás, acredito que não seria preciso projeto de lei algum se as pessoas realmente entendessem que qualquer forma de amor (homo ou hétero) faz um bem enorme aos dois envolvidos, e mal nenhum a nenhuma outra pessoa.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A vida como ela não podia ser...

  Mal inicia o quarto mês do ano e fica a impressão de que 2011 será um ano anormalmente trágico. Enchentes fora do comum por todo o mundo (Austrália, Paquistão, Brasil, China, Índia...); invernos  rigorosos nos EUA e Europa; terremotos devastadores (Chile, Nova Zelândia, Japão); revoluções por todo o mundo árabe custando a vida de milhares de pessoas (Tunísia, Egito, Iêmen, Jordânia, Bahrein, Irã, Líbia...). Parece realmente o começo do fim. Do nosso fim. E isso num momento em que a humanidade ainda está calejada das tentativas ainda frustradas de se recuperar da imensa, revoltante e estúpida crise em 2008. De todas as catástrofes que já aconteceram nesse ano, uma em particular foi a que mais me causou aflição: o terremoto no Japão. Mais precisamente uma consequência do terremoto: o desastre nuclear em Fukushima.

  Na última segunda-feira, lendo a notícia de que os técnicos da usina, que tentam há quase um mês conter o vazamento nuclear, decidiram despejar mais de 11.500 toneladas de água radioativa no mar, me veio à cabeça o pior desastre nuclear da história, em Chernobyl. Me dei conta de que nunca tinha parado para olhar de perto aquele acidente, de que nunca tinha procurado me informar exatamente quais foram suas consequências. Pesquisando, achei um documentário da discovery no youtube e fui assistir.  Confesso que pouca coisa me chocou mais que esse documentário em toda a minha vida!

  Pelos dados oficiais (muito questionados, já que a União Soviética tentou a todo custo mascarar o tamanho da catástrofe), 4.000 pessoas morreram de imediato em consequência do acidente. No entanto, pelo menos 600.000 pessoas tiveram contato direto com a radiação liberada: pelo menos 200.000 “liquidadores”, que foram os responsáveis por limpar a região do acidente depois que o vazamento foi controlado; 120.000 pessoas que moravam nas proximidades da usina e que só foram retiradas do local mais de 36 horas depois do acidente; e outros 270.000 residentes das zonas mais contaminadas. No entanto, a nuvem radioativa que saiu do reator chegou a cobrir mais da metade da Europa nos primeiros dias. Tanto que os primeiros a alertar o mundo que tinha acontecido um sério acidente nuclear, dois dias depois do desastre, nem foram os Soviéticos, mas os Suecos, que detectaram um aumento repentino de radiação perto de uma das usinas nucleares do país. Aumento esse tão grande que chegaram a pensar que o acidente tinha sido em suas usinas, e não a milhares de quilômetros dali, em Chernobyl. Pelo tamanho da área atingida, direta ou indiretamente (a radiação chegava à Europa, por exemplo, através das nuvens, e caía junto com a chuva), e pela quantidade de pessoas afetadas, é praticamente impossível estimar quais mortes (geralmente por câncer) foram consequência do acidente, e quais não foram. Mas, apenas para se ter uma noção, das 48.000 pessoas que moravam em Pripyat, a apenas 3 km da usina, pelo menos 15.000 morreram nos 6 meses seguintes ao acidente.

  O acidente de Chernobyl produziu centenas de vezes mais radioatividade que a bomba de Hiroshima, e a área próxima à usina, que inclui a cidade de Pripyat, será por pelo menos 20.000 anos uma região fantasma; um lugar onde não pode existir nenhuma espécie de vida. 20.000 anos! A título de comparação, estima-se que o homem existe há apenas 40.000 anos. Não é aterrorizante? Mas, o mais aterrorizante é a quantidade de usinas nucleares que ainda existem no mundo: 438. E mais 50 estão sendo construídas nesse momento. Lugares que, seja por um desastre ambiental (como o terremoto no Japão), seja por um simples erro humano (como em Chernobyl ou em Three Miles Island, nos EUA, onde aconteceu o terceiro maior desastre nuclear da história), tem o potencial de dizimar toda a vida ao seu redor. Por mais enchentes, terremotos ou nevascas que possam acontecer, sempre me fica a sensação de que o homem será extinto por sua mania de grandeza e por seus próprios atos irresponsáveis. 

Mapa da Localização das Usinas Nucleares do Mundo

Primeira parte do Documentário sobre o desastre de Chernobyl

Clique aqui para abrir o google maps com o sarcófago do reator que explodiu no desastre de Chernobyl, ao centro. O Sarcófago é como chamam a estrutura gigantesca de chumbo e concreto que foi construído em cima do reator para absorver a radiação que ainda emana dele. Se passear pelo mapa, poderá encontrar Pripyat ao sul e poderá ver como não existe nenhuma pessoa ou vestígio de civilização em um raio de muitos e muitos quilômetros ao redor da usina.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

As pessoas e suas caixas

Existe uma expressão em inglês que me cativou praticamente desde a primeira vez que a ouvi: “Think outside the box”. Sei que a ouvi pela primeira vez na faculdade, e se não me engano foi em uma das aulas malucas de MCC (Matemática para Ciência da Computação) do primeiro período. Não sei se tem uma expressão semelhante em português, e a tradução literal (Pense do lado de fora da caixa) não faz muito sentido na nossa língua, mas o conceito por trás dessa frase é fantástico. Significa tentar olhar um problema (ou uma situação) de um ponto de vista diferente do que você tem olhado até então. Sair da inércia de um caminho que você julgava ser o melhor para a resolução daquele problema e começar a pensar nele de uma outra forma. Nem sempre é fácil, principalmente se você já gastou muito tempo e energia naquela tentativa frustrada. Isso porque temos um sentimento cultural (e as vezes destrutivo) de dificilmente desistir de algo no meio do caminho, por mais que aquele caminho se mostre inútil e inadequado. Imagino que seja para nos proporcionarmos uma sensação de que o que fizemos até então não foi em vão. No entanto, entender o espírito dessa frase não ajuda apenas na resolução de problemas matemáticos. Na vida também existem diversas formas de resolver um problema. E, o mais importante, existem diversas formas de enxergar uma situação. Ter paciência para reconhecer mais de uma dessas formas, mesmo que um determinado ponto de vista entre em conflito com suas convicções, é um dom que realmente não é muito comum de ser visto. Vou tentar mostrar o que quero dizer com três situações que recentemente ou aconteceram comigo, li ou ouvi falar em conversas com amigos, e convido o leitor a refletir sobre elas mantendo em mente o espírito da frase “Think outside the box”.

Um garoto de 5 anos tem uma festa a fantasia para ir na escola, no Halloween. Scooby-doo é o desenho que ele mais gosta de ver, e quando sua mãe pergunta com qual fantasia ele gostaria de ir, ele responde imediatamente: Daphne. A mãe tenta convencer o menino a ir com outra fantasia mas diante da insistência do garoto acaba cedendo. Perto do dia da festa, o menino começa a ficar apreensivo. Acha que os outros garotos vão rir dele se for vestido de mulher. A mãe, acreditando que não iriam rir de um garoto de 5 anos só porque ele se fantasiou de um personagem feminino de desenho animado justamente no dia de Halloween, resolve acalmar o menino e apoiar para que vá com a fantasia que quer. No dia da festa, o menino acaba sim sendo julgado. O problema é que não são os coleguinhas que zombam dele, mas as mães dos coleguinhas é que censuram a mãe do garoto por ter deixado o filho se fantasiar de mulher. Agora, pensa no absurdo da situação: a criança está se divertindo, os coleguinhas estão se divertindo, mas as mães estão incomodadas. Por quê? O que elas tem a ver com isso, se isso não incomoda nem à mãe do garoto, nem ao garoto, nem aos coleguinhas do garoto? A história aconteceu nos Estados Unidos e está narrada aqui pela mãe do garoto (em inglês). Ela diz, em um trecho, que “Se você pensa que eu permitir que meu filho se fantasie de um personagem feminino para o Halloween vai de alguma forma 'fazer' dele um gay, então você que é um idiota. Primeiro porque este é um conceito ridículo. Segundo, se meu filho é gay, tudo bem. Eu não vou amar ele menos. Terceiro, eu não estou preocupada que seu filho vá crescer e se tornar um ninja (por só estar usando uma fantasia de ninja).”. Logo depois, ela diz: “Se minha filha tivesse se fantasiado de Batman, ninguém teria questionado ela. Ninguém.”. E é aqui que cabe o “Think outside the box”. Você pode pensar na “caixa” da expressão como sendo um conjunto de conceitos relacionados a um tema, e que você está dentro dessa caixa junto com esses conceitos. Portanto, você utiliza apenas esse conjunto de conceitos, esse paradigma, ao pensar nesse tema e acaba desconsiderando que existem outros paradigmas possíveis. No caso, o machismo da nossa ideologia ocidental (e cristã, claro) recrimina o homem se ele sequer apresentar traços de características tidas como femininas (ou “inferiores”), quanto mais se vestir de mulher! Ao passo que, características tidas como masculinas (ou “superiores”) não desagradam tanto na mulher. E isso é gritante. Pergunte a você mesmo o que acha mais “agradável”: ver um casal de lésbicas criando um filho ou um casal de homens? Ver duas mulheres se beijando ou dois homens (tanto que o primeiro caso você já viu no horário nobre da televisão, e o segundo ainda não...)? Ver um homem cuidando de casa enquanto a mulher trabalha fora ou o contrário? Uma mulher no exército ou um homem no balé? São tantos conceitos machistas que foram sendo construídos através dos séculos e que acabaram formando essa “caixa” ridícula de que homem deve ser de um jeito, e mulher deve ser de outro. E para muitas pessoas sair dessa caixa e ver que nada disso tem sentido é muito difícil. O que nos leva a nossa segunda história...

Em novembro, quando fui pra casa dos meus pais (ver aqui), Gabriel manifestou para minha mãe a vontade de fazer aula de dança. Mais precisamente de balé. Só que ele não tinha coragem de pedir para a mãe dele. Obviamente com medo de ser rechaçado (não por ela, claro, mas pelos coleguinhas, por conhecidos, etc) e de ser tachado como gay. O problema é que esse tipo de preconceito vai sendo incrustado na nossa alma em doses constantes e homeopáticas através de comentários e atitudes aparentemente inocentes que ele escuta de alguém (“Coisa de viado fazer balé!” ou “Balé não é para homem!”, etc), principalmente em cidade do interior. Então não adianta nada chegar pra ele e dizer que isso não tem nada a ver, que é besteira e que ele deveria fazer balé se ele realmente gosta. Ele pode até acreditar, mas isso não vai dar coragem suficiente para ele “abrir a caixa” e olhar o “problema” de outra forma. O que podemos fazer por ele acredito que já tenhamos feito: só de ele ter falado isso pra gente, e ter se sentido a vontade falando, já nos diz que ele entende que existe um mundo, uma situação, em que ninguém acha anormal ou “coisa de viado” fazer balé. E se ele entende isso, foi porque acabamos combatendo o veneno homeopático do preconceito com um antídoto, também homeopático, da tolerância. Ele viu que ao falar isso lá em casa, ele não foi julgado, não foi ridicularizado. Pelo contrário: foi incentivado. Devemos sim é mostrar a ele que dança é um dom, uma habilidade, e uma que nem todo mundo tem. E que existem lugares que esse dom é tão valorizado que um bom dançarino de balé é praticamente celebridade! Enfim, dar forças e argumentos para que ele possa romper sozinho essa vergonha sem sentido e tomar enfim a decisão de fazer o que quer. Quando ele chegar nesse ponto, não haverá bulling que ele possa sofrer que vai fazer com que ele desista do balé. Antes disso, qualquer obstáculo pode fazê-lo desistir.
 

Por fim, leiam essa entrevista (clique aqui), tentem sair de todas as caixas que te prendem com relação a esse assunto e pensem nas opiniões deveras divergentes do senso comum dessa psicanalista. Num próximo post eu digo o que penso dos assuntos abordados por ela.

PS.: Enquanto divagava sobre o que escrever nesse post me propus um exercício que se mostrou fascinante: como eu pensaria e agiria se conseguisse sair de todas as “caixas”? Como seria o mundo pra mim então? Só consegui chegar a uma conclusão: se fosse hinduísta, seria um Sadhu. Se fosse budista, atingiria o nirvana. Sendo cristão (ou tendo sido?), seria tido apenas como mais um louco mesmo!

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Desafio ao Gabriel – Colhendo os Frutos

Último feriadão (12 – 15 de novembro) fomos a família toda para a casa dos meus pais (em Paracatu). Poxa, quanto tempo isso não acontecia... Meus pais buscaram o Gabrielzinho em Carmo do Paranaíba, eu fui de Brasília, e meu irmão, Diogo, e a namorada, Juliana, foram de Uberlândia. É, família toda espalhada é difícil reunir. Fui o último a chegar, sexta-feira mesmo, quase meia noite. Mas, antes de tudo, uma pequena recapitulação de como andou o desafio de leitura que fiz ao meu sobrinho (veja aqui, e aqui) desde a entrevista que publiquei aqui no blog no dia 24 de agosto:

- O objetivo era, no final de setembro, fazer uma segunda entrevista com o Gabriel sobre a segunda parte do primeiro livro (O Livro das Virtudes para Crianças, Organizado por William J. Bennett), mas infelizmente a correria e os obstáculos da vida não me permitiram viajar nestes últimos meses. Primeiro foi o curso de preparação de voluntários do CVV que comecei a fazer em agosto todos os sábados (e que não terminei, infelizmente). Depois foi o mês de setembro, que com trabalho em alguns finais de semana e o casamento de um amigo em Uberlândia (pra mim, a quarta etapa da vida: infância, adolescência, faculdade, e quando os amigos da faculdade começam a se casar. Hehe. A saber, a próxima são os filhos de todos começando a pipocar por aí!) atrapalhando as viagens para Paracatu ou Carmo nos finais de semana. Depois, veio outubro... Os dois outubros que passei em Brasília, 2009 e 2010, foram meses de histórias inacreditáveis de encontros e desencontros que merecem ser contadas, mas não agora. Enfim, não encontrei pessoalmente com Gabriel, e acabei não fazendo a entrevista!
 

- Gabriel, então, começou a ler o segundo livro, que já tinha deixado com ele: “Zezinho o Dono da Porquinha Preta” - de Jair Vitória. Um livro ótimo, que se passa em uma área rural à beira do Rio Paranaíba. Achei que o lugar onde a história acontece poderia despertar alguma curiosidade no Gabriel, já que o Rio Paranaíba nasce em cidade homônima bem pertinho de Carmo do Paranaíba. Mas o tiro saiu pela culatra: Gabriel não suportou ler o livro. Imagino porque: saiu de um com várias histórias (onde ele podia ler uma inteira de uma só vez), com letras grandes, muitas gravuras, para outro, que conta uma história só, com letras menores e poucas ilustrações. Por mais que a história do livro seja emocionante e bem contada, talvez tenha sido uma mudança brusca demais. Enfim, fiquei sabendo por minha mãe que ele queria trocar de livro, e para não criar o desgosto nele de ler forçadamente o que não desejava, aceitei a troca dos livros...
 

- E acabei escolhendo outro no mesmo formato que o primeiro, recontando algumas lendas da mitologia grega: “Mitos Gregos” - Eric A. Kimmel. E esse dava até vontade de ficar com ele só para apreciar as gravuras. Lindas, muito coloridas e com um estilo marcante, elas compensavam o texto que, de tão simplificado para o público infantil, dava a sensação em alguns momentos de que alguma coisa deixara de ser contada. Mas, no final, era um bom livro, e minha mãe tinha deixado a dica que ele se interessava por mitologia. Não tinha como dar errado. Para os curiosos, eis os contos presentes no livro:

prometeu e epimeteu
a caixa de pandora
pigmalião e galatéia
eco e narciso
rei midas e o toque de ouro
aracne
perséfone e hades
orfeu e eurídice
jasão e o velocino de ouro
dédalo e ícaro
teseu e o minotauro
perseu e a medusa
odisseu
 

Enfim, os nomes podem não ser exatamente estes, mas está aí tudo o que pude lembrar (não anotei quais lendas tinham antes de entregar o livro para o Gabriel, e acabei não achando na internet). Pois bem, assim que recebeu o livro, deu para ver no rosto dele a curiosidade. Foi logo folheando e relembrando o nome das imagens que já conhecia. Achei ótimo! Mas a surpresa mesmo veio depois: enquanto todos estávamos conversando, depois de uma leitura hilária de uma versão da história dos três porquinhos que meu irmão fez, com vozes diferenciadas para cada porquinho e tudo, Gabriel começou uma leitura de um outro livrinho, e a evolução dele de junho para cá foi realmente impressionante! Está com uma leitura muito mais fluente, respeitando pausas e pontuação, e até colocando entonações diante do contexto das falas, imagino que tentando imitar um pouco o que o pai acabara de fazer com a história dos três porquinhos. Depois disso, nem quis mais fazer a entrevista sobre a segunda metade do primeiro livro! Ele não teria melhorado tanto se não estivesse lendo com certa frequência. Na verdade, pra mim ele já ganhou o Nintendo DS só por essa leitura. Mas, como ele não precisa ficar sabendo disso, deixemos ele terminar o livro sobre mitologia e vamos ver o que ele acabará absorvendo dele.

A única pergunta que fiz para ele sobre o primeiro livro foi de qual conto tinha gostado mais na metade final do livro. Na primeira metade, como vocês bem devem lembrar na entrevista, o conto que mais agradou ele foi uma história cheia de fantasia e de seres encantados sobre uma menina que resolve pegar uma estrela, e sai perguntando no mundo o que fazer para conseguir chegar até ela. Particularmente, eu prefiro a história do caçador e do gavião: um caçador, voltando da caça, resolve parar em uma fonte para tomar água. Como a fonte está escorrendo muito devagar, ele demora para conseguir encher o copo. Quando vai beber, seu gavião (ave que é sua companheira de caça há muitos anos), em um rasante, derruba o copo e toda a água no chão. Faz isso por duas vezes, e quando vai derrubar o copo pela terceira vez, o caçador o mata com um golpe de espada. Impaciente, ele resolve subir a fonte para pegar água no topo, e descobre uma cobra morta dentro da água da fonte, cujo veneno o mataria se ele bebesse da água.


Enfim, diante da pergunta de qual conto ele tinha gostado mais na segunda metade do livro, Gabriel diz exatamente o mesmo conto que mais me encantou, o do sapo e da cobra (tá, tá, eu sei que contar essas histórias assim, sem nenhum floreio, tira um pouco do charme. Mas falta um pouco de paciência para enfeitar as histórias. Então, vão assim, nuas mesmo): um sapinho e uma cobrinha se encontraram certo dia no meio da floresta. Conversaram, brincaram, e acabaram virando amigos ao final do dia. Quando voltaram para casa, contaram para seus pais dos amigos que tinham feito. A mãe da cobra disse então: não, meu filho! Você não pode ser amigo do sapo. Da próxima vez que o encontrar, você tem é que comer ele. A mãe do sapinho, por sua vez, disse ao filho: meu filho, cobras são perigosas. Não se pode confiar nelas. Da próxima vez que encontrar com a cobra, não pense duas vezes: saia correndo. Deste dia em diante, o sapinho e a cobrinha nunca mais brincaram. Mas sempre lembraram com carinho do dia em que se divertiram e foram felizes juntos.

Será que o fato do Gabriel ter gostado desses dois contos em particular pode dizer alguma coisa da vida dele? Pensei um bocado nisso, mas tudo o que disser não passará de mera suposição. Então deixo a pergunta no ar para algum leitor atento que possa querer tentar responder...

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Feed RSS

Post rápido: para quem reclama da baixa periodicidade de publicações, clique aqui para assinar o RSS do blog. Obviamente, isso não ajudará a aumentar a periodicidade das publicações, mas vai te dar o conforto de não precisar abrir o blog para ver se tem coisa nova (estou vendo as estatísticas de acesso ao blog despencarem, mas tudo pelo conforto dos leitores).

Não sei porque diabos não aparece o link em lugar nenhum do blog, nem o famoso símbolo que indica o link do RSS para o usuário clicar e assinar. Deve ser coisa do leiaute que escolhi. Mas fucei e futriquei para todo canto nas configurações e não vi nada que indicasse algo do tipo "permitir assinar RSS" ou "exibir link para assinatura do RSS". Então, enquanto procuro, assinem pelo link do primeiro parágrafo. Se você não tem ideia do que estou falando, clique aqui e descubra para que serve mais um recurso na internet que facilita muito a vida do homem moderno! Abraço a todos, e em breve mais um post sobre o Desafio ao Gabriel.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Interpretando a Vida

Esta semana tinha pelo menos três assuntos densos o suficiente para contar aqui no blog. Coisas da vida, que realmente aconteceram, fatos que mereciam ser narrados (e talvez até sejam, qualquer dia desses), mas que foram obscurecidos diante de dois vídeos. Antigos, mas como não há garantia alguma de que só o novo pode ser bom (pelo contrário?), me senti obrigado a compartilhar com vocês. O primeiro deles, e o da interpretação talvez mais impressionante e intensa que já tenha visto de uma música, me foi indicado por um amigo. E devo dizer que o mundo pára quando alguém vê esse vídeo: porque dizer Ne Me Quitte Pas (não me abandone) entre dentes tão cerrados? Não tem como isto vir de uma simples representação artística. Tem que ter alguma coisa de real nisto, algo que aconteceu na vida de Maysa que aflorou deste momento para toda a eternidade, porque, como disse meu amigo, já é unanimidade que seja (e sempre será) a interpretação mais intensa dessa música. E, pra mim, de qualquer outra que ainda surja por muito e muito tempo:



O outro vídeo veio a tona agora a pouco, relembrando este vídeo da Maysa. Outra música, outra artista brasileira, outra vez ao piano, tão intensa como e tratando praticamente do mesmo assunto. Talvez a dor da perda seja assunto que toque como nenhum outro a alma das mulheres... Tão fundo que transborda!



Obrigado, Fabiano, por me mostrar esse vídeo fantástico da Maysa. O da Elis já tinha visto. E não tinha nem como, sendo tão fã de Chico como sou... Mas valeu pela lembrança dele também. Espero que tenham apreciado tanto quanto eu.

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pessoas Especiais que Tornam a Vida Especial

Algumas pessoas tem o dom de transformar a vida por onde passam. Em ações simples, sempre com amor e bondade no coração, parecem encher de luz o lugar onde estão e as pessoas que tem a sorte de conviver com elas. Nenhum pessimismo, tristeza ou melancolia resistem à passagem dessas pessoas. Uma dessas pessoas especiais me enviou um email comentando suas impressões sobre o blog. De tão especial, vi que suas palavras não mereciam ficar apenas para nós dois. Afinal, quem leu o primeiro post do blog, sabe que ele nasceu como uma forma de dividir com o mundo meus pensamentos, porque aqui dentro eles não causam efeito nenhum em ninguém. Postos pra fora, podem fazer alguma diferença. Espero que este espírito também contagie meu primo Tarlei, o autor do email. Afinal, quem é que não gostaria de ler sempre palavras tão sabiamente agrupadas?

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Magno,
 
Tudo bem?
 
Aviso de cara que essa mensagem poderá ser longa, muito longa... Ou não... Há sempre abismos insondáveis entre intenção e gesto.
 
Aproveitando as delícias do ócio mais absoluto (estou de férias), li o seu blog. Na primeira olhada que dei nele, logo quando foi inaugurado, pressenti o cheiro de coisa boa, madura, refletida, cozinhada com calma... Muito bom! E há nele um tom propedêutico (desculpe!) que me agrada muito... Gosto muito da espessa humanidade que você esparge nos seus escritos... Isso não é novidade vindo de quem vem: um coração generoso, uma alma acolhedora, um olhar atento para os desvãos de todos nós... Pra dizer como o Martinho da Vila: "tá delícia, tá gostoso!". Parabéns!
 
Gostei de todos os posts mas fiquei especialmente tocado por dois deles. Aquele em que você comenta o filme "A estrada" e o post do Pablo. Lendo sobre o Pablo, me lembrei de imediato de um texto da jornalista Eliane Brum que abre o livro (premiado) "A vida que ninguém vê". O texto fala justamente de acolhimento e de uma maneira que me faz chorar todas as vezes que o leio. Achei que você devia ler esse texto e resolvi copiá-lo pra você (veja mais abaixo, logo após o final do email). Não consegui conter as lágrimas nem mesmo no processo de digitação. Espero que goste. 
 
O post sobre religião também me chamou a atenção. E me fez lembrar de um comentário atribuído ao grande Bertrand Russel, autor, entre outros, de um livro chamado "Ensaios céticos". Diante da hipótese de que a existência de Deus fosse um dia provada, como reagiria Russel, um notório cético? A resposta dele teria sido: "Ele não nos deu provas suficientes". Provas lógicas, que fique claro!! Russel era filósofo, lógico, matemático e grande admirador de Wittgenstein, a quem não hesitou chamar de gênio. Saramago também era agnóstico. Por acaso estou lendo, de forma intermitente, como é do meu feitio, "As palavras de Saramago", recolha de declarações feitas à imprensa. Lá está dito a certa altura: "Seria mais cômodo acreditar em Deus, mas escolhi o lugar da incomodidade". Ele fala especialmente da bondade. Diz que  se tivesse de haver uma religião, a única em que acreditaria é a da bondade. Tentei localizar as exatas palavras dele, mas não consegui. Minhas palavras pecam pela imprecisão e incompletude. 
 
Ainda não me animei a mexer no meu blog. Agora o problema é o seguinte: estou com preguiça de selecionar material escrito, editar, rever, aparar, buscar imagens para enfeitar cada post... Talvez semana que vem... Talvez nunca... Você comenta sobre a inconstância de suas postagens e calhou de eu ler um texto do Rafael Rodrigues que fala disso. O texto de certo modo confirma a postura que você resolveu adotar: a de não ter pressa de postar. Segue o link do texto.

(...)
Abraços,
Tarlei
 
 
A história de um olhar
(Eliane Brum)

O mundo é salvo todos os dias por pequenos gestos. Diminutos, invisíveis. O mundo é salvo pelo avesso da importância. Pelo antônimo da evidência. O mundo é salvo por um olhar. Que envolve e afaga. Abarca. Resgata. Reconhece. Salva.
Inclui.
Esta é a história de um olhar. Um olhar que enxerga. E por enxergar, reconhece. E por reconhecer, salva.
Esta é a história do olhar de uma professora chamada Eliane Vanti e de um andarilho chamado Israel Pires.
Um olhar que nasceu na Vila Kephas. Dizem que, em grego, kephas significa pedra. Por isso um nome tão singular para uma vila de Novo Hamburgo. Kephas foi inventada mais de uma de década atrás pedra sobre pedra. Em regime de mutirão. Eram operários da indústria naqueles tempos nada longínquos. Hoje, desempregados da indústria. Biscateiros, papeleiros. Excluídos.
Nesta Kephas cheia de presságios e de misérias vagava um rapaz de 29 anos com o nome de Israel. Porque em todo lugar, por mais cinzento, trágico e desesperançado que seja, há sempre alguém ainda mais cinzento, trágico e desesperançado. Há sempre alguém para ser chutado por expressar a imagem-síntese, renegada e assustadora, do grupo. Israel, para a Vila Kephas, era esse ícone. O enjeitado da vila enjeitada. A imagem indesejada no espelho.
Imundo, meio abilolado, malcheiroso, Israel vivia atirado num canto ou noutro da vila. Filho de pai pedreiro e de mãe morta, vivendo em uma casa cheia de fome com a madrasta e uma irmã doente. Desregulado das ideias, segundo o senso comum. Nascido prematuro, mas sem dinheiro para diagnóstico. Escorraçado como um cão, torturado pelos garotos maus. Amarrado, quase violado. Israel era cuspido. Era apedrejado. Israel era a escória da escória.
Um dia Israel se aproximou de um menino. De nove anos, chamado Lucas. Olhos de amêndoa, rosto de esconderijo. Bom de bola. Bom de rua. De tanto gostar do menino que lhe sorriu, Israel o seguiu até a escola. Até a porta onde Lucas desaparecia todas as tardes, tragado sabe-se lá por qual magia. Até a porta onde as crianças recebiam cucas e leite. Israel chegou até lá por fome. De comida, de afago, de lápis de cor. Fome de olhar.
Aconteceu neste inverno. Eliane, a professora, descobriu Israel. Desajeitado, envergonhado, quase desaparecido dentro dele mesmo. Um vulto, um espectro na porta da escola. Com um sorriso inocente e uns olhos de vira-lata pidão, dando a cara para bater porque nunca foi capaz de escondê-la.
Eliane viu Israel. E Israel se viu refletido no olhar de Eliane. E o que se passou naquele olhar é um milagre de gente. Israel descobriu um outro Israel navegando nas pupilas da professora. Terno, especial, até meio garboso. Israel descobriu nos olhos da professora que era um homem, não um escombro.
Capturado por essa irresistível imagem de si mesmo, Israel perseguiu o olho de espelho da professora. A cada dia dava um passo para dentro do olhar. E, quando perceberam, Israel estava no interior da escola. E, quando viram, Israel estava na janela da sala de aula da 2ª série C. Com meio corpo para dentro do olhar da professora.
Uma cena e tanto. Israel na janela, espirando para dentro. Cantando no lado de fora, desenhando com os olhos. Quando o chamavam, fugia correndo. Escondia-se atrás dos prédios. Mas devagar, como bicho acuado, que de tanto apanhar ficou ressabiado, foi pegando primeiro um lápis, depois um afago. E, num dia de agosto, Israel completou a subversão. Cruzou a porta e pintou bonecos de papel. Israel estava todo dentro do olhar da professora.
E olhar começou a se espalhar, se expandir, e engolfou toda a sala de aula. A imagem se multiplicou por 31 pares de olhos de crianças. Israel, o pária, tinha se transformado em Israel, o amigo. Ganhou roupas, ganhou pasta, ganhou lápis de cor. E, no dia seguinte, Israel chegou de banho tomado, barba feita, roupa limpa. Igualzinho ao Israel que havia avistado no olho da professora. Trazia até umas pupilas novas, enormes, em forma de facho. E um sorriso também recém-inventado. Entrou na sala onde a professora pintava no chão e ela começou a chorar. E as lágrimas da professora, tal qual um vagalhão, terminaram de lava a imagem acossada, ferida, flagelada de Israel.
Israel, capturado pelo olhar da professora, nunca mais o abandonou. Vive hoje nesse olhar em formato de sala de aula, cercado por 31 pares de olhos de infância que lhe contam histórias, puxam a mão e lhe ensinam palavras novas. Refletido por esses olhos, Israel passou a refletir todos eles. E a professora, que andava deprimida e de mal com a vida, descobriu-se bela, importante, nos olhos de Israel.
Israel, não importa se alguém não gosta de você. O que importa é que você siga a vida, aconselha Jeferson, de oito anos. Israel, não faz mal que tu sejas grande e um pouco doente, tu podes fazer tudo o que tu imaginares, promete Greice, de nove. Israel, se alguém te atirar uma pedra eu vou chamar o Vandinho, porque todo mundo tem medo do Vandinho, tranquiliza Lucas, nove. Israel, tu me botas na garupa no recreio?
E foi assim que o olhar escorreu pela escola e amoleceu a ruas de pedra.
Israel, depois que se descobriu no olhar da professora, ganhou o respeito da vila, a admiração do pai. Vai ganhar vaga oficial na escola. Já consegue escrever o “P” de professora. E ninguém mais lhe atira pedras. A professora, depois que se descobriu no olhar de Israel, ri sozinha e chora à toa. Parou de reclamar da vida e as aulas viraram uma cantoria. A redenção de Israel foi a revolução da professora.
Em 7 de Setembro, Israel desfilou. Pintado de verde-amarelo, aplaudido de pé pela Vila Pedra.